quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Cristaleira

Quem nunca roubou doces atire, pra cá, o primeiro bombocado!

Cristaleira

Divindade inexorável,
A cristaleira da sala
Guardava porta-retratos
Dos quais ancestrais me olhavam.
Gente que, fora da foto,
Vivia menos altiva
Parecia reprovar-me.

Arrogante cristaleira
Cheia de taças compridas
Que a ninguém interessavam
Guardava, ainda por cima,
Bem lá em cima, na verdade,
Um grande pote de doces
Que eu ganharia se fosse
Um doce por não roubá-los.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Pó de Broca

Fazia dez anos que Eulália pensava em livrar-se do sítio. Aquele lugar de má sorte estava acabando com sua família. Seus filhos viviam doentes. Os vizinhos ajudavam como podiam, mas gostavam de fazer piadas, dizendo que o mal era preguiça.

Na semana em que seu neto mais velho morreu de “doença ruim”, Eulália soube que um hotel de luxo pretendia adquirir terras na região. Os proprietários locais enfileiravam-se para falar com o administrador do projeto e oferecer-lhe seus imóveis. Desesperada para salvar os netos restantes, Eulália resolveu furar a fila. Em seus sessenta anos de muita luta e pouco estudo, aprendera que “gente importante gosta de papel”. Escreveu:

Senhor gerente do HOTEL

Meu nome é Eulália ao seu dispor e tenho um sítio lindo pra vender. Ele é bem grande e tem muito mato atlântico que dá pra botar abaixo com machado ou tacando fogo. Tem bicho pequeno bom de caçar. Onça eu garanto que não tem mais. Meu falecido acabou com a última. O cafezal tá judiado, mas, se o senhor fizer gosto em continuar a plantação, pode ficar com todo o pó de broca do nosso depósito. É um veneno tão bom que o governo não deixa mais vender. Quem tem esconde porque vale ouro, mas o senhor pode ficar com ele junto com o sítio. Pergunte de mim na farmácia do Juca que eles mostram onde eu moro.

Sua criada Eulália Braga

O hotel comprou o sítio por uma ninharia quando Eulália soube que seu cancerígeno depósito de BHC não era tão bom quanto parecia. O “mato atlântico” e seus bichos à beira da extinção foram preservados e atraem ônibus de turistas.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Calendário


Tem saúva na folhinha,
Sobre a mesa do café.
Passou pelo mês passado,
Parou no dia de hoje,
Seguiu sobre o mês que vem.

Depois desfez seu caminho,
Zanzou por tempos confusos
E desceu do calendário.

Em breve, serão dezenas
De formigas viajando
Pelas páginas de tempo,
Colhendo cada farelo
De pão doce derrubado.

Mais insetos trabalhando
Sobre as sobras que deixamos
Ao planejar o futuro
Comendo o presente às pressas,
Por cima do calendário.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A Fuga

Celulares recheiam o pão de cada dia nos presídios.

A Fuga

"...Não, Analu, não tem problema! Eu já disse que vai ser moleza... Alô! Olha, vou repetir: a gente cava o túnel; passa por baixo do pátio; arrebenta o muro do presídio... Não, sua burra, a gente não vai sair do túnel. A gente fica lá dentro mesmo e arrebenta a parte do muro que fica dentro da terra. Daí a gente cava mais um pouco e sai dentro da sua casa... É claro que não tem perigo; é só o pessoal aqui do pavilhão. Tudo limpeza! Eu não ia levar bandido pra sua casa e, além do mais... Como? Se vai arrebentar o ladrilho?... Ladrilho de onde, minha filha?... Não, Analu, ninguém vai arrebentar ladrilho do seu banheiro. O banheiro é só pro pessoal tomar banho, trocar o uniforme, essas coisas... Vamos, vamos sair no quarto... É, vai estragar o sinteco. Depois a gente manda arrumar. Entendeu tudo?... Não?... Então faz o seguinte: amanhã eu te ligo de novo... É, vão me emprestar o telefone do delegado... Não, corta essa de falar do nosso futuro! Falar de amor em celular, nem morto! Tremenda cilada! Até amanhã, Analu!"

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Acampamento

Pros meus amigos urbanos, para aprenderem que
cada canto tem seu espanto e cada dia, sua fobia.

Acampamento

Clareira de pernoitar!

Nossos passos pela mata
Trazem temores urbanos.
Somos desacostumados
Ao mal sobrenatural.
Não nos assaltam fantasmas
De esvoaçantes mortalhas,
Mas fantasmas de assaltantes
Armados até os dentes.

Clareira de acampamento
Com muito medo e comida
Trazidos lá da cidade.

Não vemos, na pedra negra
Que hoje nos serve de mesa,
O altar de velhas magias
Nem percebemos, nos fios
De luar à beira mata,
As cordas de antigas harpas
Tangidas pelos morcegos
Em voos invocativos
Aos espíritos noturnos.

Jantamos entre fantasmas
Partilhando a pedra-altar.

Dois mundos que mal se tocam,
Mas que dormem lado a lado,
Quando se apaga a fogueira
Da clareira acampamento.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Debate-Boca

Recentemente acompanhei um debate perfeito, do tipo que, por pouco, não descambou pro bate-boca. Desse espetáculo empolgante, retirei instruções para quem quiser promover um evento ainda melhor. Providencie mesa, plateia, dois debatedores com vocação para o estrelato e um bravo mediador.

Instruções:
  1. O tema do debate não tem importância nenhuma. É válido ignorá-lo e partir direto para a autoglorificação descarada.
  2. Irritar o oponente é a lei.
  3. Ganha o debate quem se mostrar mais controverso e/ou aloprado.
  4. Vale xingar a mãe, desde que seja a própria.
  5. Não vale chutar o oponente por baixo da mesa, porque pode atingir o mediador.
  6. Cabe ao mediador salvar-se como puder, enquanto atua como barreira seletiva, permitindo agressões verbais e impedindo as físicas.
  7. Seduzir a plateia faz parte do jogo. Convocá-la para uma briga de torcidas é opcional.
  8. Carícias por baixo da mesa, para seduzir o oponente ou o mediador só serão permitidas se a mesa não tiver toalha. A plateia tem o direito de acompanhar o debate a fundo.
  9. O mediador tem o direito de sentar-se em posição de lótus, sobre a cadeira, para evitar chutes. Pode, também, usar tapa-sexo de titânio contra golpes baixos (amorosos ou não).
  10. O bom debate deve terminar com promessas de "Te pego na saída..." que podem continuar de três modos:
a)"...pra comer uma pizza."
b) "...e te quebro a cara."
c) "...e te beijo na boca."

terça-feira, 16 de novembro de 2010

XI Prêmio Escriba de Poesia

Sábado, 13 de novembro, na recém-inaugurada biblioteca pública municipal de Piracicaba, aconteceu a cerimônia de premiação do XI Prêmio Escriba de Poesia.

Medalha de 1o lugar de autor piracicabano ou, no meu caso, residente;
coletâneas com os poemas vencedores e troféu Escriba.

Os jurados Otacílio Monteiro e Marisa Bueloni, eu,
Paulo Sérgio de Carvalho e Silva, terceiro colocado,
e a jurada Carmen Pilotto.

Eu e o Fabrício Carpinejar, que participou
do debate com o jurado Ulisses Tavares.

Lendo o poema vencedor.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O Outro

Áudio em http://swft.fm/drMox5
     O Outro

 A vítima, o faminto, o diferente,
O estranho, o triste, o herege, o escuro, o torto,
O belo, o feio, o pobre, o dissidente,
A fêmea, o sábio, o bruxo, o livre, o morto
Destroem nosso mundo tão perfeito,
Desprezam o viver em cativeiro,
Prosseguem sem pensar que, deste jeito,
Expõem nossos temores por inteiro.
A cada qual aguarda seu suplício:
Degredo, beijo-à-força, excomunhão,
Mordaça, ferro em brasa, cruz, hospício,
Fogueira, forca, roda, escravidão...
          Seguimos demonstrando, desde cedo,
          Ao outro a imensidão de nosso medo.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Zevers, O Esquecido

Conto que obteve o 2º lugar no VI Concurso de Contos e Crônicas, da Unimep.

Zevers, O Esquecido

Era um dia de rotina dos Infernos. Pecadores nus tentavam esconder-se entre os vapores sulfúreos. Por trás das rochas, hordas demoníacas espreitavam, preparando o ataque. O chão, a ponto de liquefazer-se, queimava os pés descalços. Ao centro da grande caverna, instrumentos de tortura aguardavam suas vítimas.
 
Uma corneta recurva como um chifre emite o sinal tão esperado. Demônios lançam-se às almas perdidas que correm, caem, lutam ou simplesmente deixam-se estar imóveis, petrificadas de horror. Tridentes zunem, acertando seus alvos pelas costas. Garras afiadas arrastam os prisioneiros até as paredes de onde pendem grilhões. Iniciam-se as torturas. Gritos lancinantes ecoam. Estalam chicotes de aço.

Nem todos passam pelo suplício ao mesmo tempo. Alguns permanecem acorrentados observando com terror o que os aguarda e matando a sede com goles de chumbo derretido, servido em belas taças de pedra.

Em um canto do salão, um espelho oval reflete as metamorfoses de um ser indeciso. Zevers, o das grandes orelhas, transforma-se várias vezes, sem resolver-se. Ora é homem, ora é mulher, ora velho, jovem, belo, forte, frágil... Ensaia caretas de pavor, contorções de dor, gritos, gemidos, lamentações... Pensa até em ajoelhar-se e iniciar uma prece, uma súplica aos Céus. Não tem tempo. Uma tenaz em brasa puxa-o pela orelha.

-- Anda, Zevers! Atrasado como sempre! Escolha qualquer forma e junte-se aos pecadores.

Zevers novamente não tem tempo. A corneta recurva soa outra vez e toda a balbúrdia cessa.

-- Fim da primeira parte do exercício! Troquem de personagens e aguardem meu sinal! -- grita o instrutor que passa voando.

Grande correria em direção ao espelho. O grupo dos pecadores transforma-se em demônios apavorantes e a horda dos demônios torna-se um bando de pecadores apavorados.

Precisam superar-se. É a regra do treinamento. O Inferno está dividido em duas equipes que treinam todos os dias, invertendo papéis. Assim será até o Juízo Final, quando os verdadeiros condenados chegarão. Aí sim, os demônios serão somente demônios e cumprirão seus deveres.

Soa a corneta novamente e Zevers continua em frente ao espelho. Não sabe qual forma apavorante escolher. Um diabrete vermelho? Um monstro sem cabeça, com olhos na barriga? Uma serpente-salamandra? O problema de Zevers é o excesso de imaginação (além das orelhas grandes, é claro). Mesmo como crocodilo alado, as orelhas lá estão! Um crocodilo com orelhas daquele tamanho, só mesmo no Inferno!

Desiste do exercício. Retira-se do salão às escondidas. Está entediado e cheio de dúvidas. Será que os pecadores realmente virão algum dia? Há séculos que treinam e tentam. Sim, Zevers também é um espírito tentador. Conhece bem os homens. Já levou milhares de almas ao caminho da perdição. Mas será que haverá mesmo um julgamento? Será que seus esforços fazem sentido? Zevers é um demônio de pouquíssima fé.

Esgueira-se pelos corredores mal iluminados a procura de “seus aposentos”. Quer dormir. É um hábito humano do qual não abre mão. Adquiriu-o depois de perder a memória em uma batalha contra um espírito de luz. Zevers, o esquecido, era visto com certo respeito, pois enfrentar uma criatura celeste exigia coragem. Ele, porém, não se lembrava da luta.

Suas excentricidades não paravam por aí. Além de dormir e até sonhar, Zevers lia e dava ouvidos a tudo o que escutava. Agora, por exemplo, escutava passos a segui-lo. Parou. Os passos pararam. Decidiu voar e ouviu outras asas em seu encalço. Espiões, certamente!

-- O que vocês querem? -- berrou com falsa fúria.

O bater de asas afastou-se, os corredores ficaram vazios.

Desconfiavam dele e com razão. Ele era um conspirador, um dissidente entre dissidentes. Precisava disfarçar melhor. Foi à câmara do supervisor das atividades tentadoras, um arquidemônio curioso e detalhista, e, depois das formalidades de sempre, fez seu relatório:

-- Estimulei um conflito religioso no Oriente, instiguei a criação de novas armas biológicas, convenci os laboratórios que estavam a meu encargo a manter em segredo a cura de certas doenças a fim de continuarem vendendo remédios...

Continuou falando de massacres, crimes ambientais, corrupção, exploração da miséria... fatos verdadeiramente ocorridos com os humanos aos quais fora designado como tentador.

O arquidemônio chamou-o “o melhor espírito das trevas em termos de tentação, quase tão bom quanto o próprio Satã”. Zevers saiu orgulhoso. Era bom ser elogiado mesmo quando, ou melhor, especialmente quando não merecia. Aqueles pecados todos haviam acontecido, mas sem a interferência de qualquer demônio. Os homens tinham feito o que fariam de qualquer jeito, simplesmente porque eram estúpidos em seus ódios e interesses. Zevers desprezava a humanidade. Odiava-a. Queria poder exterminá-la antes que ela mesma o fizesse. Graças a ela, era obrigado a reconhecer sua inutilidade como tentador. E lá estava ele, um demônio inútil como os outros, uma existência sem sentido dedicada a tentações desnecessárias e à espera de um Juízo Final que talvez não viesse.

Pensando bem, ele duvidava da própria existência. Não se lembrava de Deus, de anjos, da queda e jamais vira Satã depois de perder a memória. Sabia, através dos homens, que havia outros infernos diferentes daquele: o inferno dos gregos, o inferno gelado e outros infernos quase esquecidos. Os homens eram tão maus que deveriam ter criado os demônios à sua imagem e semelhança. “Pensam-me, logo existo”, blasfemava Zevers cartesianamente, contra Céus e Infernos.

*          *          *

-- Acabamos de ver Zevers, o esquecido, saindo do Inferno sem autorização. Ele levava uma sacola negra. Devemos prendê-lo? -- perguntou um dos guardas ao arquidemônio.

*          *          *

Da igreja inacabada restavam três paredes a ponto de desabar. Zevers ajeitou um altar com as pedras do chão, cobriu-o com um pano branco, tirou dois vasos da sacola que trouxera e lamentou não ter conseguido flores. Bem que tentara apanhá-las pelo caminho, mas suas mãos faziam-nas murchar. Encheu os vasos com mato seco e achou-os até bonitos para enfeitar seu ritual. Acendeu velas brancas e, toque final, colocou sobre o altar sua obra-prima: um livro ricamente encadernado em cuja capa rebrilhava a palavra “Bíblia”. Beijou-o solenemente, mas preferiu deixá-lo fechado, pois as páginas estavam em branco. Tentara roubar uma Bíblia verdadeira, mas todas feriram-lhe as mãos como espinhos.

Ajoelhou-se, começou a rezar. As preces saiam de trás para a frente. Desesperou-se, precisava falar com Deus. Gritou:

-- Sei que está me ouvindo, fale comigo!

-- O universo todo está te ouvindo, Zevers. Para que tanto barulho? O que pensa que está fazendo? -- perguntou o arquidemônio aparecendo de repente.

Zevers tremeu. Como explicar-se? A verdade, talvez?

-- Olá, é um ritual de missa branca, como pode ver. Calma, escuta! Quero falar com Deus. É, falar com Deus. Preciso de respostas. Você sabia que existem outros infernos além do nosso?

-- Todos sabemos disso, seu desmemoriado! Se tem dúvidas, por que não pergunta a mim ou pede uma audiência a Satã?

-- Porque eu acho que Satã também não sabe.

Zevers perdeu a pouca prudência que lhe restava. Disse ao arquidemônio que, muitas vezes, ouvira Satã chorar de saudade de Deus. Disse que ouvira-o suplicar perdão em voz baixa e jurar vingança aos berros, porque não era atendido.

Um raio fulminou o altar e Satã, furioso, surgiu flamejante acompanhado por uma legião armada.

-- Amarrem o traidor mentiroso! -- ordenou.

Zevers foi preso sem opor resistência. A um sinal de Satã, os demônios partiram.

-- Mentindo sobre mim novamente, não é, Zevers?

-- Tende piedade, Satã, de minha atroz miséria! -- suplicou Zevers baudelairiano. -- Eu queria apenas falar com Deus.

-- Deus está morto, seu idiota! -- urrou Satã.

-- Não acredito! De jeito nenhum! Oh, desculpe-me, mas... Bem... nesse caso... -- disse Zevers aturdido -- que mal há em eu querer falar com Ele? Deixe-me tentar e, se ninguém responder, saberei que Ele morreu. Pensando bem, grande Satã, se nós dois tentarmos juntos, poderemos ter mais certeza ainda. Venha, rezar comigo. Venha!

-- Como se atreve a tentar-me!?

Satã bateu palmas e o arquidemônio retornou voando com uma enorme ânfora cheia d’água.

-- Despeje sobre o traidor! -- ordenou Satã.

-- Esperem! O que tem aí dentro? -- gritou Zevers.

-- Apenas água. Água do inferno grego. Você não é especialista em outros infernos diferentes do nosso? Então deve saber quais são os rios do inferno de Cérbero. Vamos, diga quais são! Diga os nomes. Eu te ordeno!

-- Aqueronte, Flegetonte... Cocito... Estige... -- balbuciou Zevers.

-- Esqueceu o mais interessante: o rio Letes, o rio do esquecimento.

A água caiu sobre Zevers que mal teve tempo de gritar e desmaiou. O arquidemônio desamarrou-o e transportou-o com cuidado, pelos ares, de volta ao inferno. O Príncipe das Trevas ficou só. Sabia que, por alguns séculos, nada teria a temer. Zevers perdera a memória e fora esquecido novamente. Acordaria rodeado por demônios dos quais não se lembrava e que também não se lembravam dele. Levaria tempo até reorganizar seus pensamentos subversivos e atrever-se a tentá-lo outra vez. Sim, ele certamente voltaria a tentá-lo porque era o único capaz de ouvir seu choro de saudade a qualquer distância.

-- Pronto, meu Príncipe! -- disse o arquidemônio, retornando. -- O esquecido está entregue. Repeti a história da luta entre ele e um anjo de luz.

“História verdadeira”, pensou Satã, orgulhoso. “Sou o maior anjo de luz que jamais existiu”.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Nosso Modo de Existir

Áudio em http://swft.fm/a4wFRu


Nosso Modo de Existir

Se quer comprar uma casa,
Procure em outro lugar.
Aqui o silêncio gravou marcas nas paredes
Que não nos deixam dormir à noite.
Nem pense em morar junto ao lago de pedras,
Soluços rochosos com gosto de rio
Sonhando cavalos marinhos.
Os fantasmas empoeirados deste lugar
Precisam estar sozinhos
Para abrir os velhos vidros de perfume,
Encher seus rostos de talco
E dançar, dançar e dançar.
Não deixe que seu egoísmo
Venha a despertar o que não mais se quer.
Mas, por favor, não nos abandone,
Venha nos visitar,
É sempre bom ter sonhos.
E, após termos brincado, parta
E não retorne sobre seus passos.
Não nos traga de volta à vida
Porque nós, espíritos desta casa,
Não queremos mais morrer.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Aos Tímidos


Áudio em http://swft.fm/9U2gP7



Aos Tímidos

Não vou dizê-las
porque hoje faz frio
e as palavras são tantas
que ando tonto de escutá-las.

Não vou dizê-las
porque, antes de todas,
sou tímido,
diante do pensar,
sou tantos
que mal posso distinguir-me.

Porque as comportas da fala
não me cabem
e não me comporto bem
diante delas.

Porque o poema
traz, de graça, mais graça
que a conversa fiada
comprada com tédio.

Porque meus amigos
-- pessoas, poemas --
entendem meus cantos
e poucas palavras.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Redes Surradas


Redes Surradas

Quem quer ter idéias próprias?
Parece muito mais fácil
Comprá-las premeditadas,
Surradas antes de usar.

São vendas postas à venda,
Roubando aos nossos caminhos
As vertigens do possível,

Idéias esfarrapadas
Que se estendem como redes
Por baixo da corda bamba,
Aguardando um passo em falso.

Parecem suficientes?
Quem confia, um passo à frente!

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Heresia

Heresia

Um pobre diabo
Na porta da igreja
Ressona maldades
E sete pecados

Inveja dos anjos
Redondos e loiros
Dormindo macios
Nas nuvens das santas

Orgulho de estar
Pertinho da porta
Tremendo de medo
No alto da escada

Que a noite é um quarto
Escuro e fechado
Onde anjos rebeldes
Se afagam e assustam

E estando bem juntos
Na ira e na fome
Parecem maiores
Às portas de Deus

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Fotografia

Fotografia

As plumas de seu chapéu
Não sabem dizer do vento.
Souberam, não sabem mais.
Viveram do azul intenso
Aberto a todos os seres
Que podem ou não voar.

As peles desnecessárias
De seu conforto ostensivo
Não sabem dizer da luz.
Souberam que a luz é vida,
Que, mesmo à noite, perdura
Em olhares luminosos
Espalhados pela mata.

Os povos além da História
Não podem mais lhe falar.
Viraram fotografia
Como você vai virar.
Sorria!

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Poema em Pseudo-Haicais

Forma original do poema vencedor do Prêmio Escriba de 2010

Ficou difícil de ler? Então aí vai uma versão alongada e legível em computador:
*
Poema em Pseudo-Haicais
*
Sete Chaves
*
Todo segredo
esconde um saber
que esconde um medo.
*
Desatino
*
Loucas as rocas
que fiam destinos
e fiam-se neles.
*
Atração
*
Forte maré alta:
a lua a tentar roubar
o mar que lhe falta.
*
Revoada
*
As painas esparsas
despedem-se da paineira
qual bando de garças.
*
Reflexo
*
Nuvem espessa
e as plantas no lago
de ponta cabeça.
*
É tarde!
*
Vento sonolento
assopra as últimas velas...
Apagam-se os barcos.
*
Inverno
*
Veloz vento frio
embala o prado ondulado
num contra-arrepio.
*

terça-feira, 21 de setembro de 2010

ALVORECER


Alvorecer

A noite se prolonga e o sol desperto
Espreita a lentidão da madrugada,
Senhora do silêncio mais incerto,
Por anjos e demônios cortejada.

Momento em que os segredos vagam perto
Das sombras relutantes da alvorada,
Encontram o portal do sonho aberto
E emboscam pensamentos pela estrada.

A leve luz, em breve, vem chegando.
Acendem-se lanternas cor de aurora,
Candeias pondo em fuga o sono brando.

Porém o próprio tempo se demora,
Parando para ouvir, de quando em quando,
Os velhos sons dos carrilhões de outrora.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Incertas Porcentagens


Olhar de peixe morto, jeito de quem não quer nada e uma insegurança dos diabos. O sedutor aprendiz se prepara. Leu num jornal que as manifestações de nervosismo atrapalham a conquista. Reduzem em 50% as chances de sucesso. Pede outra caipirinha e sente-se mais calmo, quase confiante.

Tem três cantadas na ponta da língua. Três das boas, irresistíveis. Tem também uns elogios, duas promessas, quatro confidências. Decorou tudinho, até as propostas atrevidas, meio atrevidas, sutis e quase sutis. Ai, essa não! Esqueceu as quase sutis! E agora? O que vai fazer se a moça for do tipo quase recatada? Calma, calma... Não deve ser. Uma quase recatada não lhe daria um tapa na cara. E aquela garota, às vezes, parecia querer esbofeteá-lo. Era do tipo selvagem.

Quarta ou quinta caipirinha, lembra que leu numa revista alguma coisa sobre o álcool. Ou foi num livro? Foi, foi num livro mesmo. Dizia que o álcool, bebido no gargalo, prejudica os dentes em 50%. Mas será que prejudica todos? No livro não estava escrito, mas devia prejudicar mais os da frente. Isso aí! 50%, os da frente... 40%, os de lado... e uns 20%, os do fundo.

Quando a quase recatada chega, ele já cantou, dançou, fez discurso e prejudicou seus dentes da frente ao cair desmaiado de boca na mesa.

Para a moça, no entanto, isso não importa. É uma sedutora aprendiz e tem outro na mira. Planejou cuidadosamente o que fazer. Primeiro um olhar de peixe morto. Depois... %... %...

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Viajante


Com carinho, para os amigos do Twitter.

Viajante

Viagens muitas fiz cruzando os mares.
Por sorte, encontrei sempre um porto amigo
E muitas amizades invulgares,
Tornando-se saudade, vêm comigo.

Também serei teu porto se chegares
A procurar, em mim, seguro abrigo.
Serei presente enquanto desejares,
Depois, saudade sendo, irei contigo.

Prefiro viajar constantemente.
Aceito, em minha vida, quem souber
Partir e, mesmo assim, estar presente.

Não temo tempestade ou dor qualquer.
Fui náufrago. Hoje sou sobrevivente.
Destino? Aceito o vento que vier.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Premiação na ABL

Quinta-feira, 26 de agosto, marido ao volante, chegamos ao aeroporto de Viracopos, Campinas - SP, com uma hora e meia de antecedência. A ideia era deixar o carro em algum dos quatro estacionamentos.

Nada feito! Todos lotados! Depois que a Azul começou a operar mais de quarenta voos diários de Viracopos, o aeroporto tem engarrafamento de passageiros estressados disputando uma vaga aos buzinaços e xingamentos. A polícia mantém a desordem sob controle, multando e guinchando quem para onde não deve.

Apelamos para um estacionamento particular, longe do aeroporto e chegamos correndo ao portão de embarque.

Pra que tanta pressa? O avião também estava atrasado porque haviam derramado combustível nele durante o abastecimento no Rio, como nos informou a tripulação. "Demoramos para secar a aeronave", disseram.

"Mantenham as persianas abertas durante a decolagem!" pediam as comissárias.

"Por quê?" perguntei.

"Para nos informarem caso haja um principio de incêndio no exterior da aeronave."

"Ah, bom! Tá explicado."

Não houve incêndio. Houve suco de laranja, batatinha frita e goiabinha.

Descemos no Santos Dumont, pertinho da ABL.

Distância ABL-Aeroprto = R$ 10,00 com gorjeta pro motorista

Fomos os primeiros a chegar. Depois vieram o Eryck (com três amigos) e a Bíbi (com o marido).

Um bibliotecário apaixonado por seu trabalho guiou o grupo em uma visita à biblioteca. Seus livros raros e obras de arte compensam o tamanho relativamente pequeno. São vinte mil volumes exalando aquele perfume delicioso que todo rato de biblioteca adora: cheiro de livros!

A biblioteca é aberta ao público e auxilia em pesquisas.


O quadro "A Dama do Livro" pertenceu a Machado de Assis.

Escrivaninha de Olavo Bilac

Nós três microescritores demos microentrevistas à assessoria de imprensa enquanto o fotógrafo oficial pedia que não usássemos nossas câmeras, pois ele mesmo tiraria as fotos de todo o evento. E tirou muitas, com a máxima gentileza e atenção!

Depois da biblioteca, fomos ao chá.

O Acadêmico Marcos Vilaça, atual presidente da ABL, cumprimentando o Eryck,
na passagem para o salão de chá. Ao fundo, eu, meu marido e a Bíbi.


Chá com bolo inglês, bolo-de-rolo e outras delícias. À minha frente,
a Acadêmica Nélida Piñon, primeira mulher a presidir a ABL.

O Acadêmico Arnaldo Niskier, ex-presidente da ABL, entregando meu prêmio.

Após o chá, os imortais se retiraram para sua reunião particular. A Bíbi e o marido precisaram ir embora, mas o restante do grupo ficou com a Teresinha, relações públicas da ABL, para uma visita guiada pela academia.

As últimas fotos foram no exterior da academia, onde fica a estátua do Machado de Assis.


A estátua fica sobre um pedestal de aproximadamente dois metros de altura.

Às cinco da tarde, nos despedimos do Eryck e de seus amigos. Voltamos para Campinas, no voo das seis. Mais batatinhas, suco de pêssego light e cookies. Muito obrigada à ABL pelas passagens!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Poema Subterrâneo

Poema Subterrâneo

Somos os homens da noite,
Da densa noite das tocas
Onde o minério se esconde.
Somente a nós se permite
Esta visão da montanha:
Montanha vista por baixo,
Menos vista que sentida.

Somos os homens do medo
Mineralmente gravado
Em nossos pulmões de pedra.
Somente a nós se permite
O silêncio mais perfeito:
O silêncio com que as rochas
Preparam desabamentos.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Trova

Geologias à parte, que erosão mais poética! 

Trova

O belo desgaste lento,
Nestas pedras que contemplo,
Resulta do movimento
Do vento a esculpir seu templo.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

À Luz

Versão em áudio, aqui

À Luz

Meu gato de sete sombras
Deixou duas no telhado,
Vigiando a lua cheia.
Outras duas vagam soltas
Pelos muros dos vizinhos.

Meu gato de sete saltos
Leva uma sombra consigo.
Sei que já comeu veneno,
Caiu de incríveis alturas,
Correu de carros velozes.

Duas sombras nem meu gato
Sabe bem por onde andam.
Parece que estão no mato,
Dando à luz filhotes pardos.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Algo além dos Livros

Poema título deste blog e do CD de poemas premiados.
http://bit.ly/aq4xqm

Algo Além dos Livros

Na vasta estante do tempo,
atrás de livros maiores,
ficou há muito perdido
o script de várias vidas.

Agora faz companhia
a mitos, a línguas mortas,
a histórias sem voz nem dono.

À noite esse estranho exército
invade o reino da lógica,
altera o rumo dos fatos
e passa a chamar-se “acaso”.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

INSTÁVEL

Poeminha surrealista em homenagem a Salvador Dali.

Instável

Pregou seus quadros no chão.
Assim desorientada,
A casa um dia adernou
E o chão tornou-se parede.

Hoje os quadros fazem frente
À parede que foi teto,
À parede de onde pendem
Cristais de um lustre partido.

Somente os quadros se arriscam
A sentir-se em equilíbrio.

PRESENTE

Poema inspirado em aceleradores de partículas e na brincadeira de embrulhar um presente em várias embalagens. Após a forma circular, original, coloquei uma transcrição linear que evita torcicolos na leitura.

Presente

Presente

Surpresa: dentro da caixa, tem outra caixa menor!
E, dentro dela, mais muitas com outras no interior.
Presente estranho que aumenta receio de nada haver
se, dentro de tantos dentros, somente o dentro estiver.

CLASSIFICADOS

Baseado nos pequenos anúncios dos jornais, este poema é meu trabalho com maior número de prêmios pelo Brasil todo.

Classificados
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REVENDO, por motivo de mudança, poema seminovo, em bom estado, com torres-de-marfim vindas de França e um lago em seus jardins ensimesmado. Em troca, aceito um canto mais moderno, repleto de grafismo em tons escuros, com guardas patrulhando o lado externo e um medo a se esgueirar por entre os muros.
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QUASE SERIAMENTE

Esta crônica pegou 3o lugar num concurso em Canoas - RS. Isso foi no milênio passado. Se fosse hoje, obteria melhor classificação, pois está atualíssima.


QUASE SERIAMENTE

Nestes tempos em que alguns medicamentos mais valem como placebos, que tal refletirmos, quase seriamente, sobre certas questões da saúde?

A Ciência é cheia de ziguezagues e verdades parciais provisórias. Faz testes em roedores e aplica os resultados em humanos. Faz testes em humanos e aplica os resultados na Bolsa de Nova York.

Vive mudando de ideia. O mesmo sujeito que descobriu a cura da fadiga pós-pileque através dos comprimidos de carambola volta à televisão e desmoraliza os fabricantes da droga. Diz que o medicamento não funciona e que, em altas dosagens, pode até causar tendinite, pois a embalagem é dura de abrir.

Alvoroço geral: congressos, simpósios e debate-bocas a respeito do tema "A Captação da Essência Carambolesca na Transmilenaridade Farmacológica"; usuários arrependidos pensando em readerir ao suflê de confrei em pó; camelôs apregoando a liquidação dos últimos frascos de "Carambola Pills®" importadas do Paraguai.

Quando a poeira baixa, saem novas pesquisas, desmentindo as antigas. Cai, novamente, o confrei e ressurge a carambolatria.

Desse modo, um cientista só consegue prestígio ao ser apontado como o redesdescobridor de nem ele sabe o quê.

Vejamos a questão da saúde. A TV mostra um pronto-socorro cheio de pobres, que resolveram passar mal logo naquele dia exato em que os médicos, os remédios e as ambulâncias estavam de férias. Surge a violenta tele-indignação popular. Ultrajado, o espectador quer vingança, clama por ela, mas vai se acalmando enquanto assiste à matéria seguinte: a câmera trepidante mostra o PM Francelino Ferreira fazendo o parto de uma balconista na fila de um caixa-rápido. Um repórter comovido diz que a mãe do bebê pretende batizá-lo como Cleyton Francelino e quer que ele seja médico de shopping center (profissão pra lá de moderna) quando crescer. Consumidores, sintam-se a salvo!

Enquanto o Francelininho não cresce, a balbúrdia na saúde passa bem. Chovem ideias, nada se aproveita. Baixos salários? Corrupção? Despreparo? Privatizar? Re-estatizar? Explodir de vez?

Se vale qualquer palpite, sugiro a criação do "Pronto-Socorro de Autoatendimento" ("Pronto-Me-Socorro", para os íntimos).

No pronto-me-socorro, casos bobos como tiros de raspão, mordidas de animais de boca pequena, flechadas, envenenamentos e fraturinhas simples seriam tratados pelo próprio infeliz que sofre com eles.

Para você resolver sozinho essas insignificâncias, haveria toda a estrutura necessária. Por exemplo:

- farmácia self-service, com setor para degustação de novos lançamentos;

- sistema "drive-thru" para fraturados, começando pela radiografia, passando pelo engessamento automático e terminando na máquina de assinaturas, onde seu gesso novinho receberá autógrafos e dedicatórias de seus astros preferidos;

- sala de auto-observação, com espelho no teto e maca redonda opcional.

O transporte do paciente ficaria também por sua própria conta. Em caso de emergência, o estrebuchante motorizado colocaria, no teto de seu carro, um sinalizador luminoso igual aos das ambulâncias e sairia feito doido, com a sirene ligada.

Ainda restam dúvidas sobre os casos de omissão de socorro, negligência e imperícia. Se você demorar para se atender, tratar-se com descaso e fizer um serviço porco, deve ser punido? Deveria ter sua licença de automedicação cassada? Eu acho que depende. Se sobreviver, talvez deva.

DADOS VICIADOS


Segundo colocado no Concurso de Microcontos da Academia Brasileira de Letras:

DADOS VICIADOS

Joguei. Perdi outra vez! Joguei e perdi por meses, mas
posso apostar: os dados é que estavam viciados.
Somente eles, não eu.

A SÉTIMA ESCULTURA


Inspirada na escultura acima, escrevi o conto "A Sétima Escultura", que ficou em primeiro lugar no Primeiro Concurso Literário de Arte Cemiterial de Piracicaba - SP.


A SÉTIMA ESCULTURA

Eu tinha apenas sete anos e estava ajudando meu pai na marmoraria quando aconteceu pela primeira vez. Foi rápido demais. Apaguei enquanto varria o chão. Correram parentes, correram clientes, correram vizinhos, correu a notícia:

-- O Zizinho da marmoraria morreu!

Esse "Zizinho" era eu, mas só me chamavam assim depois de morto. Em vida, eu era "aquele moleque do Ziza", "aprendiz de capeta".

Foi tanta gente carinhosa vindo chorar no meu velório que desisti de morrer e voltei.

-- Catalepsia -- diagnosticaram os clientes mais cultos.

-- Milagre -- concluiu minha mãe.

-- Parte com o diabo -- sentenciaram os vizinhos.

A família precisou me desterrar para a casa de um tio, porque os clientes começaram a evitar nossa marmoraria. Achavam que eu não dava sorte.

Tio Olavo foi bom para mim. Generosamente aceitou minhas dez horas de trabalho diário, como aprendiz, na fundição. Assim eu não sentiria que estava "morando de favor". Permitia-me, também, continuar esculpindo nos momentos de folga.

Ah, as esculturas, minha paixão, estiveram sempre comigo! Meu pai restaurava peças de mármore e me ensinou a esculpir usando retalhos de pedra. Na fundição, eu economizava cada centavo para imortalizar, em bronze, minhas pequenas criações.

Aos catorze anos, aconteceu de novo: morri e desmorri bem rápido. Tio Olavo se aborreceu. Era "má publicidade". Vendeu minhas estatuetas "pra pagar o prejuízo". Um comprador, dono de galeria, gostou delas e me arranjou uma bolsa para estudar artes plásticas.

-- Se ele vai perder tempo estudando desenho, -- disse tio Olavo -- é melhor arrumar um emprego de verdade pra se sustentar.

Fui trabalhar na galeria. Trabalho fácil, estudo interessante, muito tempo livre, material à vontade para esculpir, passeios a museus... era o paraíso! E o paraíso é o inferno quando aparece assim, de repente, para quem não está acostumado com a boa vida. Comecei a pensar na morte.

As esculturas vendiam bem... e eu pensando na morte. Eu ganhava prêmios... e pensava na morte. Minha exposição era um sucesso... e a morte me fazia delirar.
Delírio ou visão? Não sei.

Eu ia fazer vinte e um anos e cismei que morreria de novo e, dessa vez, poderiam me enterrar vivo. O terror foi tanto que passei mal. O mundo se transformou numa neblina brilhante. Um anjo de mármore apareceu e falou comigo. Disse que meu mal nunca mais me atacaria se, a cada sete anos, eu doasse uma escultura para um cemitério. Seriam sete esculturas, uma a cada sete anos, o anjo da visão me disse.

A primeira doação foi para meu próprio pai, que faleceu no mês seguinte. Fiz um anjo da saudade. Meu tio Olavo gostou tanto que se ofereceu para me aceitar de volta na fundição. Abri mão da oferta porque estava com exposição marcada fora do país.

O túmulo de minha mãe, morta sete anos depois, recebeu a escultura de uma pranteadora. Eu ainda estava rezando quando tio Olavo bateu no meu ombro.

-- Voltou da Europa pra enterrar os parentes? Veio fazer bonito pros jornais mostrarem como o "grande artista" é generoso?

Olhei incrédulo para ele.

-- Pare de me olhar com essa cara de abutre! E guarde suas esculturas pro seu enterro! Eu ainda vou viver muito.

E viveu mesmo. Doei outras esculturas para pessoas desconhecidas, a cada sete anos. Meu mal nunca mais me afligiu. Enriqueci, envelheci e esperei. Esperei, ansiosamente, a morte de tio Olavo. Preparei, com todo ódio, a escultura de seu túmulo: a escultura de um velho com olhos maus, deixando cair um livro de contabilidade.

No ano em que eu deveria entregar a sétima escultura, tio Olavo adoeceu. Obstinadamente, aguardei seu falecimento, porém meu aniversário chegou e tio Olavo melhorou.

Morri ao receber a notícia de sua saída do hospital. O velho miserável me enterrou mais que depressa e ainda mandou colocar sua escultura por cima do meu cadáver.

Agora estou enterrado, mas continuo bem vivo. Quem quiser uma prova é só visitar meu túmulo, pois, de sete em sete anos, quando faço aniversário, o livro da escultura se abre e, em vez de contabilidade, suas páginas metálicas ilustram a história da minha vida.