terça-feira, 24 de agosto de 2010

Poema Subterrâneo

Poema Subterrâneo

Somos os homens da noite,
Da densa noite das tocas
Onde o minério se esconde.
Somente a nós se permite
Esta visão da montanha:
Montanha vista por baixo,
Menos vista que sentida.

Somos os homens do medo
Mineralmente gravado
Em nossos pulmões de pedra.
Somente a nós se permite
O silêncio mais perfeito:
O silêncio com que as rochas
Preparam desabamentos.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Trova

Geologias à parte, que erosão mais poética! 

Trova

O belo desgaste lento,
Nestas pedras que contemplo,
Resulta do movimento
Do vento a esculpir seu templo.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

À Luz

Versão em áudio, aqui

À Luz

Meu gato de sete sombras
Deixou duas no telhado,
Vigiando a lua cheia.
Outras duas vagam soltas
Pelos muros dos vizinhos.

Meu gato de sete saltos
Leva uma sombra consigo.
Sei que já comeu veneno,
Caiu de incríveis alturas,
Correu de carros velozes.

Duas sombras nem meu gato
Sabe bem por onde andam.
Parece que estão no mato,
Dando à luz filhotes pardos.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Algo além dos Livros

Poema título deste blog e do CD de poemas premiados.
http://bit.ly/aq4xqm

Algo Além dos Livros

Na vasta estante do tempo,
atrás de livros maiores,
ficou há muito perdido
o script de várias vidas.

Agora faz companhia
a mitos, a línguas mortas,
a histórias sem voz nem dono.

À noite esse estranho exército
invade o reino da lógica,
altera o rumo dos fatos
e passa a chamar-se “acaso”.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

INSTÁVEL

Poeminha surrealista em homenagem a Salvador Dali.

Instável

Pregou seus quadros no chão.
Assim desorientada,
A casa um dia adernou
E o chão tornou-se parede.

Hoje os quadros fazem frente
À parede que foi teto,
À parede de onde pendem
Cristais de um lustre partido.

Somente os quadros se arriscam
A sentir-se em equilíbrio.

PRESENTE

Poema inspirado em aceleradores de partículas e na brincadeira de embrulhar um presente em várias embalagens. Após a forma circular, original, coloquei uma transcrição linear que evita torcicolos na leitura.

Presente

Presente

Surpresa: dentro da caixa, tem outra caixa menor!
E, dentro dela, mais muitas com outras no interior.
Presente estranho que aumenta receio de nada haver
se, dentro de tantos dentros, somente o dentro estiver.

CLASSIFICADOS

Baseado nos pequenos anúncios dos jornais, este poema é meu trabalho com maior número de prêmios pelo Brasil todo.

Classificados
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REVENDO, por motivo de mudança, poema seminovo, em bom estado, com torres-de-marfim vindas de França e um lago em seus jardins ensimesmado. Em troca, aceito um canto mais moderno, repleto de grafismo em tons escuros, com guardas patrulhando o lado externo e um medo a se esgueirar por entre os muros.
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QUASE SERIAMENTE

Esta crônica pegou 3o lugar num concurso em Canoas - RS. Isso foi no milênio passado. Se fosse hoje, obteria melhor classificação, pois está atualíssima.


QUASE SERIAMENTE

Nestes tempos em que alguns medicamentos mais valem como placebos, que tal refletirmos, quase seriamente, sobre certas questões da saúde?

A Ciência é cheia de ziguezagues e verdades parciais provisórias. Faz testes em roedores e aplica os resultados em humanos. Faz testes em humanos e aplica os resultados na Bolsa de Nova York.

Vive mudando de ideia. O mesmo sujeito que descobriu a cura da fadiga pós-pileque através dos comprimidos de carambola volta à televisão e desmoraliza os fabricantes da droga. Diz que o medicamento não funciona e que, em altas dosagens, pode até causar tendinite, pois a embalagem é dura de abrir.

Alvoroço geral: congressos, simpósios e debate-bocas a respeito do tema "A Captação da Essência Carambolesca na Transmilenaridade Farmacológica"; usuários arrependidos pensando em readerir ao suflê de confrei em pó; camelôs apregoando a liquidação dos últimos frascos de "Carambola Pills®" importadas do Paraguai.

Quando a poeira baixa, saem novas pesquisas, desmentindo as antigas. Cai, novamente, o confrei e ressurge a carambolatria.

Desse modo, um cientista só consegue prestígio ao ser apontado como o redesdescobridor de nem ele sabe o quê.

Vejamos a questão da saúde. A TV mostra um pronto-socorro cheio de pobres, que resolveram passar mal logo naquele dia exato em que os médicos, os remédios e as ambulâncias estavam de férias. Surge a violenta tele-indignação popular. Ultrajado, o espectador quer vingança, clama por ela, mas vai se acalmando enquanto assiste à matéria seguinte: a câmera trepidante mostra o PM Francelino Ferreira fazendo o parto de uma balconista na fila de um caixa-rápido. Um repórter comovido diz que a mãe do bebê pretende batizá-lo como Cleyton Francelino e quer que ele seja médico de shopping center (profissão pra lá de moderna) quando crescer. Consumidores, sintam-se a salvo!

Enquanto o Francelininho não cresce, a balbúrdia na saúde passa bem. Chovem ideias, nada se aproveita. Baixos salários? Corrupção? Despreparo? Privatizar? Re-estatizar? Explodir de vez?

Se vale qualquer palpite, sugiro a criação do "Pronto-Socorro de Autoatendimento" ("Pronto-Me-Socorro", para os íntimos).

No pronto-me-socorro, casos bobos como tiros de raspão, mordidas de animais de boca pequena, flechadas, envenenamentos e fraturinhas simples seriam tratados pelo próprio infeliz que sofre com eles.

Para você resolver sozinho essas insignificâncias, haveria toda a estrutura necessária. Por exemplo:

- farmácia self-service, com setor para degustação de novos lançamentos;

- sistema "drive-thru" para fraturados, começando pela radiografia, passando pelo engessamento automático e terminando na máquina de assinaturas, onde seu gesso novinho receberá autógrafos e dedicatórias de seus astros preferidos;

- sala de auto-observação, com espelho no teto e maca redonda opcional.

O transporte do paciente ficaria também por sua própria conta. Em caso de emergência, o estrebuchante motorizado colocaria, no teto de seu carro, um sinalizador luminoso igual aos das ambulâncias e sairia feito doido, com a sirene ligada.

Ainda restam dúvidas sobre os casos de omissão de socorro, negligência e imperícia. Se você demorar para se atender, tratar-se com descaso e fizer um serviço porco, deve ser punido? Deveria ter sua licença de automedicação cassada? Eu acho que depende. Se sobreviver, talvez deva.

DADOS VICIADOS


Segundo colocado no Concurso de Microcontos da Academia Brasileira de Letras:

DADOS VICIADOS

Joguei. Perdi outra vez! Joguei e perdi por meses, mas
posso apostar: os dados é que estavam viciados.
Somente eles, não eu.

A SÉTIMA ESCULTURA


Inspirada na escultura acima, escrevi o conto "A Sétima Escultura", que ficou em primeiro lugar no Primeiro Concurso Literário de Arte Cemiterial de Piracicaba - SP.


A SÉTIMA ESCULTURA

Eu tinha apenas sete anos e estava ajudando meu pai na marmoraria quando aconteceu pela primeira vez. Foi rápido demais. Apaguei enquanto varria o chão. Correram parentes, correram clientes, correram vizinhos, correu a notícia:

-- O Zizinho da marmoraria morreu!

Esse "Zizinho" era eu, mas só me chamavam assim depois de morto. Em vida, eu era "aquele moleque do Ziza", "aprendiz de capeta".

Foi tanta gente carinhosa vindo chorar no meu velório que desisti de morrer e voltei.

-- Catalepsia -- diagnosticaram os clientes mais cultos.

-- Milagre -- concluiu minha mãe.

-- Parte com o diabo -- sentenciaram os vizinhos.

A família precisou me desterrar para a casa de um tio, porque os clientes começaram a evitar nossa marmoraria. Achavam que eu não dava sorte.

Tio Olavo foi bom para mim. Generosamente aceitou minhas dez horas de trabalho diário, como aprendiz, na fundição. Assim eu não sentiria que estava "morando de favor". Permitia-me, também, continuar esculpindo nos momentos de folga.

Ah, as esculturas, minha paixão, estiveram sempre comigo! Meu pai restaurava peças de mármore e me ensinou a esculpir usando retalhos de pedra. Na fundição, eu economizava cada centavo para imortalizar, em bronze, minhas pequenas criações.

Aos catorze anos, aconteceu de novo: morri e desmorri bem rápido. Tio Olavo se aborreceu. Era "má publicidade". Vendeu minhas estatuetas "pra pagar o prejuízo". Um comprador, dono de galeria, gostou delas e me arranjou uma bolsa para estudar artes plásticas.

-- Se ele vai perder tempo estudando desenho, -- disse tio Olavo -- é melhor arrumar um emprego de verdade pra se sustentar.

Fui trabalhar na galeria. Trabalho fácil, estudo interessante, muito tempo livre, material à vontade para esculpir, passeios a museus... era o paraíso! E o paraíso é o inferno quando aparece assim, de repente, para quem não está acostumado com a boa vida. Comecei a pensar na morte.

As esculturas vendiam bem... e eu pensando na morte. Eu ganhava prêmios... e pensava na morte. Minha exposição era um sucesso... e a morte me fazia delirar.
Delírio ou visão? Não sei.

Eu ia fazer vinte e um anos e cismei que morreria de novo e, dessa vez, poderiam me enterrar vivo. O terror foi tanto que passei mal. O mundo se transformou numa neblina brilhante. Um anjo de mármore apareceu e falou comigo. Disse que meu mal nunca mais me atacaria se, a cada sete anos, eu doasse uma escultura para um cemitério. Seriam sete esculturas, uma a cada sete anos, o anjo da visão me disse.

A primeira doação foi para meu próprio pai, que faleceu no mês seguinte. Fiz um anjo da saudade. Meu tio Olavo gostou tanto que se ofereceu para me aceitar de volta na fundição. Abri mão da oferta porque estava com exposição marcada fora do país.

O túmulo de minha mãe, morta sete anos depois, recebeu a escultura de uma pranteadora. Eu ainda estava rezando quando tio Olavo bateu no meu ombro.

-- Voltou da Europa pra enterrar os parentes? Veio fazer bonito pros jornais mostrarem como o "grande artista" é generoso?

Olhei incrédulo para ele.

-- Pare de me olhar com essa cara de abutre! E guarde suas esculturas pro seu enterro! Eu ainda vou viver muito.

E viveu mesmo. Doei outras esculturas para pessoas desconhecidas, a cada sete anos. Meu mal nunca mais me afligiu. Enriqueci, envelheci e esperei. Esperei, ansiosamente, a morte de tio Olavo. Preparei, com todo ódio, a escultura de seu túmulo: a escultura de um velho com olhos maus, deixando cair um livro de contabilidade.

No ano em que eu deveria entregar a sétima escultura, tio Olavo adoeceu. Obstinadamente, aguardei seu falecimento, porém meu aniversário chegou e tio Olavo melhorou.

Morri ao receber a notícia de sua saída do hospital. O velho miserável me enterrou mais que depressa e ainda mandou colocar sua escultura por cima do meu cadáver.

Agora estou enterrado, mas continuo bem vivo. Quem quiser uma prova é só visitar meu túmulo, pois, de sete em sete anos, quando faço aniversário, o livro da escultura se abre e, em vez de contabilidade, suas páginas metálicas ilustram a história da minha vida.