terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Pó de Broca

Fazia dez anos que Eulália pensava em livrar-se do sítio. Aquele lugar de má sorte estava acabando com sua família. Seus filhos viviam doentes. Os vizinhos ajudavam como podiam, mas gostavam de fazer piadas, dizendo que o mal era preguiça.

Na semana em que seu neto mais velho morreu de “doença ruim”, Eulália soube que um hotel de luxo pretendia adquirir terras na região. Os proprietários locais enfileiravam-se para falar com o administrador do projeto e oferecer-lhe seus imóveis. Desesperada para salvar os netos restantes, Eulália resolveu furar a fila. Em seus sessenta anos de muita luta e pouco estudo, aprendera que “gente importante gosta de papel”. Escreveu:

Senhor gerente do HOTEL

Meu nome é Eulália ao seu dispor e tenho um sítio lindo pra vender. Ele é bem grande e tem muito mato atlântico que dá pra botar abaixo com machado ou tacando fogo. Tem bicho pequeno bom de caçar. Onça eu garanto que não tem mais. Meu falecido acabou com a última. O cafezal tá judiado, mas, se o senhor fizer gosto em continuar a plantação, pode ficar com todo o pó de broca do nosso depósito. É um veneno tão bom que o governo não deixa mais vender. Quem tem esconde porque vale ouro, mas o senhor pode ficar com ele junto com o sítio. Pergunte de mim na farmácia do Juca que eles mostram onde eu moro.

Sua criada Eulália Braga

O hotel comprou o sítio por uma ninharia quando Eulália soube que seu cancerígeno depósito de BHC não era tão bom quanto parecia. O “mato atlântico” e seus bichos à beira da extinção foram preservados e atraem ônibus de turistas.

4 comentários:

  1. Querida Carla, quem escreve está sempre retratando a vida. Assim, mais uma vez, vemos o mais forte se aproveitando do mais fraco. Dessa vez , a vítima foi a decidida Eulália, tadinha,rs. Muito bom o conto.Beijo!

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  2. Olá Carla, eu estou bem e desejo que esteja tudo bem contigo!
    Belo texto Carla, a pobre da Eulália foi mais uma das muitas vitimas do sistema e seus aliados! Quando acreditamos nas pessoas erradas sempre nos prejudicamos!
    Agradeço pelas as suas sempre gentis e carinhosas visitas e comentários, desejo pra você e todos ao redor tudo de bom sempre, grande abraço e até mais!

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  3. Demorei uns segundinhos pra deixar cair a ficha do que era BHC, mas lembrei perfeitamente. Meu pai usava muito na roça de cacau, há 35, 40 anos atrás. Quando se descobriu que era cancerígeno foi um escândalo...

    Discordo que a Eulália tenha sido vítima "do sistema". Ela foi vítima da sua ignorância, do desconhecimento tanto sobre o BHC quanto sobre a conservação do meio-ambiente. Mas que bom que a historinha teve um final feliz... a preservação é um bem maior que o enriquecimento de alguns. Pena é que ela mesma desvalorizou seu sítio.

    Bjooo

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  4. Muito bom este. Adorei a carta da Eulália.

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