terça-feira, 29 de março de 2011

Ininvejável

Um conto sobre a dor de não ser invejável

Ininvejável
 
Juliano estava trabalhando na tabela de compras quando Manuela chegou insistindo para que ele levasse um presente de boas-vindas ao gerente recém-chegado. A moça insistia e insistia porque apostara com os colegas que conseguiria fazer o “funcionário padrão” largar o serviço.

 Mas, Juliano, o que custa você levar um presentinho pro homem? Ele é o nosso novo chefe.

 Já disse que tô ocupado, Manu! Tira esse presente da minha mesa. Eu já ajudei na vaquinha. Manda outro entregar ou vai você mesma.

Eu não posso. As pessoas iam ficar com inveja de mim.

E daí? perguntou Juliano, tirando o pacote da mesa.

Daí que inveja mata respondeu Manuela, fazendo o infalível charminho que usava para convencer Juliano a trabalhar em seu lugar. Você não quer que eu morra, né, Julianinho?

Ah, entendi por que você quer que eu vá. Você quer que eu morra no seu lugar, quer que o pessoal tenha inveja de mim.

Manuela olhou pro relógio e se irritou porque o tempo combinado para ganhar a aposta estava passando.

Inveja de você? Ninguém tem inveja de você, Juliano. Você é ininvejável! disse, irônica.

Como assim?

Nada, bobagem, brincadeira! Esquece!

Esqueço coisa nenhuma respondeu Juliano, magoado. Explica o que você quis dizer. Explica que eu levo o pacote.

Bom, é que você é meio insignificante aqui no escritório. Ninguém repara que você existe.

Eu carrego este escritório nas costas. Sou um ótimo funcionário.

É, mas eu sou mais popular que você. Sou conhecida.

Conhecida como puxa-saco!

Pode ser, mas eu sou boa nisso e não te invejo respondeu Manuela, ferida. Nós cinco fizemos uma reunião e decidimos que só você poderia entregar o presente porque o novo chefe nem repararia na sua presença. Assim nenhum de nós levaria vantagem por ser o primeiro.

Eu sou invejável insistiu Juliano. O seu namoradinho Laércio, que é vagabundo, pode até não me invejar, mas o Figueira deve morrer de inveja do meu casamento feliz.

Não fala assim do Laércio! Ele não precisa trabalhar porque sabe entrar nos esquemas. Já você, nem quando nós te convidamos, você topa.

Eu não sou ladrão...

Cala a boca! Você pediu, vai escutar. O Figueira não quer nada com o seu casamento feliz. Ele acha a sua mulher um lixo.

Dá aqui esse presente, Manu! Dá pra mim que eu entrego.

Manuela voltou para sua mesa. Dobrar Juliano sempre lhe dava uma sensação de vitória, mesmo quando não havia uma aposta envolvida.

Juliano entregou o presente, os esquemas e os colegas. Foi demitido e continuou ininvejável.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Herbóreo

Às feiticeiras, cuja magia fez a fortuna de médicos e farmacêuticos

Herbóreo

É noite de lua certa.
No bosque desencantado,
plantas mágicas esperam
ritual apropriado.

Não basta querer colhê-las.
É preciso ter nos lábios
palavras de encantamento
e, nas mãos, os gestos sábios.

Depois da colheita feita,
convém conhecer os jeitos
de extrair de cada planta
o melhor dos seus efeitos.

Perfume, elixir, unguento,
feitiços, chás e tintura.
Secar, filtrar, macerar...
alívio, melhora ou cura.

Minhas dores despertaram
em noite de lua alta.
o bosque aguarda sereno,
mas a magia me falta.

Feitiços feitos em série
um balconista apresenta:
caixinhas, bulas, pastilhas
e uma lembrança do bosque:
no troco, balas de menta.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Deu bode

Deu bode no meu carnaval em Treze Tílias - SC.

Eu sempre ouvi comentários de que os bodes eram animais bravos, perigosos, que gostavam de dar marradas, chifradas e coices. Nos desenhos, eles perseguem as pessoas e tentam empurrá-las de penhascos. Isso sem falar das bobeiras religiosas que transformaram o bode na figura do capeta.

Aconteceu, porém, que eu estava lá numa fazenda sem penhasco, turistando com o marido como guarda-costas e apareceu um curral cheio de ovinos e caprinos lindos. Tinha só uma cerca de arame trançado nos separando dos bichos, mas eles estavam tão calmos que não resisti: colei a barriga na cerca, estiquei o braço e fiz aquele "Pis-pis-pis!" que a gente faz pra chamar gato. E não é que o bode atendeu!

 Bode tranquilo esperando o Leroy tirar foto

Mais de um metro de bode gordo e manso se aproximou pra ganhar carinho. Ficou uns dois minutos, lambendo as nossas mãos feito um cachorro. De repente virou as costas e foi embora, sem mais nem menos. Me deixou lá, de braço estendido e cara de boba, chamando. Foi até o meio do curral e voltou trazendo os filhotes. Com o focinho, ele empurrava os cabritinhos na nossa direção.

Bode, cabra e cabritinhos de meio metro

Foi lindo!
Brincamos com a família inteira.
Saímos felizes e... cheios de carrapatos. :)
Era esse o plano do bode: descarrapatar-se em nós.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Ciência


Ciência

Procura-se um mistério que resista
A quantas armadilhas racionais
Soubermos preparar em seu caminho,
Usando nossos métodos letais.

Procura-se um mistério que nos traga
De volta à insegurança original,
Que leve muito tempo a desvendar-se
E entregue seus segredos no final.

Ao vê-lo assim, inerte, dominado,
Doando ao conhecer seu corpo etéreo,
Teremos que chorar nossa orfandade:
Procura-se, procura-se um mistério.

terça-feira, 1 de março de 2011

Ausência

Poema premiado em S. José dos Campos, no milênio passado

Ausência

Perder é conhecer completamente.
Falando assim não quero predispor
Aquele que perder seu grande amor
À busca de outra dor que o alimente.

Mas quem não percebeu que o amor presente,
Que arrasta nossa sombra aonde for,
Em breve perde o ar encantador
E acaba por findar-se de repente?

Porém, quando esse amor longe estiver,
Evite angustiar-se quem puder
Em meio à solidão que nos assalta.

Agora se revela à consciência
Que parte do querer se faz de ausência.
Perder é conhecer o amor e a falta.